Um Sistema de Sucesso
Às vezes é engraçado ouvir um fulano dizer, quando sabe que eu sou professor: “Ah, isso de dar aulas é a coisa mais fácil que há.” E até tem piada quando um sicrano acrescenta: ”Pois é: recebem bem, têm férias todo o ano…” Deixo-os gozar esse momento de delírio sobralcidesco e então junto-me à paródia e digo, eu beltrano: “Ah… e por acaso as aulas dão-se?” (mal sabem eles que, nas condições actuais, a juventude lusa cada vez menos está disposta a receber aulas… Neste estado de coisas, acho que nem vender aulas, quanto mais dar!) E, sem pausa, acrescento, em jeito de desbloqueador de conversa: “Ah, já agora: sabem que a docência é a profissão com velocidade record no que toca ao esgotamento neurológico?” Recorrendo à língua inglesa, elucido:”Pois é, esse processo tecnicamente designa-se por burnout, o que, traduzido, significa qualquer coisa como consumir até à extinção.” Continua a parecer um mar de rosas? É mais um oceano de cactos.É verdade que, cada vez mais, docentes rima com doentes. E a patologia não é de difícil diagnóstico, porque alunos rima cada vez menos com estudantes. Se as criaturas que temos à nossa frente agem, no espaço que outrora se designava por sala de aula, como se de um zoológico se tratasse, não acham que é um “bocadito” complicado ensinar? Uma pessoa nem sequer se consegue fazer ouvir, muitas das vezes…Se entre telemóveis, revistas, discmans, bonés e até maços de cigarros (!) não sobra sequer espaço nas secretárias para o material escolar, como é possível pretender organizar algum trabalho?O raciocínio das entidades responsáveis pelo Ensino em Portugal é talvez a grande explicação para a enfermidade dos professores. Estou a ser tendencioso? Talvez não. Ora sigamos a lógica das chefias. Há alunos com problemas de aprendizagem relacionados com falta de trabalho e síndroma da preguicite? Arranja-se um relatório psicológico e baixa-se o nível de exigência! Há alunos que têm dificuldades de concentração porque o avô do primo esteve preso por um crime de faca e alguidar que deixou traumas até à oitava geração? Arranja-se um relatório psicológico e baixa-se o nível de exigência! Há alunos que já são avaliados por “objectivos mínimos”? Arranja-se um relatório psicológico e baixa-se ainda mais o nível de exigência? (Não pode ser? Tem que poder! Arranja-se uns “objectivos ainda mais mínimos”!)E com isto tudo, lá têm que se abater mais umas árvores, para dar vazão à quantidade de papelada necessária, faz-se a cama aos meninos, “coitadinhos”, porque “Portugal já não é um país de analfabetos” e blá blá blá. Tudo transita minha gente, nem que seja só por saber escrever o nome, e pronto, temos um sistema de sucesso. E se houver algum problema, a culpa é dos professores. Obviamente. Porque quando uma equipa de futebol faz jogos miseráveis, a culpa é sempre do treinador.Talvez este desabafo esteja inflacionado – será pelo facto de eu trabalhar numa escola de subúrbio onde já uma boa meia-dúzia de professores esteve ou está de atestado médico por sintomas de depressão? Talvez a minha opinião seja demasiadamente pessimista – será por este ano leccionar num estabelecimento caracterizado pelo peculiar número semanal de participações disciplinares por turma, pela presença diária de elementos da Polícia ou até pelas invasões já perpetradas por encarregados de educação em fúria? Talvez haja algum exagero na minha análise – será por ter ouvido, algumas vezes de forma velada e muitas vezes de forma explícita, insultos à minha pessoa, dentro da aula? Ou será por ter turmas de vinte e muitos alunos, dos quais 90% (ou mais) vêm para a escola para jogar à bola, ouvir música e fumar coisas acabadas em “arros”?Talvez seja preciso, para citar os mais velhos, “voltar ao antigamente”. Porque alunos com problemas familiares, com dificuldades de aprendizagem, com carências sócio-económicas sempre existiram. Mas havia níveis de exigência razoáveis. E era preciso trabalhar. Professores melhores ou piores sempre houve. Mas havia respeito, dentro e fora da sala de aula. Sejamos objectivos: o facilitismo é hoje em dia a trave mestra do ensino. E isso só agrava a já gritante desestimulação cerebral de uma sociedade telemovelística e telenovelística, na qual os alunos têm à disposição, precocemente, tudo o que não deviam ter. E tornam-se autênticas múmias, sem espírito de curiosidade, sem capacidade verbal, sem horizontes sociais. Salvem-se as excepções.Para o caso de o leitor estar com dúvidas…Sim. Estou a falar de situações quase-paranóicas referentes a alunos de 2º e 3º ciclos do Ensino Básico. Nessas idades, muitos deles não são estudantes no sentido académico, mas em matérias alternativas já são mais que doutores…
1 Comments:
Boa,
excelente!
Zétó
sexta-feira, fevereiro 24, 2006 3:37:00 da manhã
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